Dois anos e meio de trabalho, visitas e muita conversa separam maio de 2023 dos dias 2 e 5 de agosto de 2025, quando a equipe do Plantear foi uma “primeira última vez” para a Comunidade do Contestado na Lapa (PR) celebrar a conquista do Plano de Alienação e Aplicação (PAA). No começo de agosto, o Plano foi entregue para a comunidade em assembleia no dia 2 e, depois, no dia 5, no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA – PR), em Curitiba.
Durante a reunião de entrega do PAA na comunidade, Antonio Capitani, uma das lideranças do local, destacou a construção do processo ao longo de mais de 20 anos:
“Nós estamos construindo uma proposta que vai ser para a sociedade estar dentro da discussão para resgatar nossas florestas e criar uma outra consciência e gestão. Eu trago isso dando os parabéns para nós, por ter enfrentado esses 26 anos de processo”, afirmou

A comunidade do Contestado foi fundada no ano de 1999 pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) para famílias de agricultores que lutavam pela reforma agrária. Desde então, as famílias do Assentamento convivem com a madeira do pinus e do eucalipto que eram posses da empresa que operava na região e lá permaneceram após a saída da firma.
Essa madeira começou a proliferar em áreas que cobriam o assentamento, inclusive, em locais de cultivo dos assentados. Com essa discussão em andamento, o Incra resolveu fazer a doação da madeira para as famílias no ano de 2023 e foi assim que a demanda chegou para o Plantear.
“Então a gente entrou como uma assessoria para planejar a venda das madeiras e, depois, transformar isso em investimento para as famílias”, conta Jorge Montenegro Gomez, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e integrante do Plantear. Desirée Lambert, também do Plantear, destacou durante a reunião de entrega: “Esse trabalho foi criado aqui no Contestado.”
De fato, o PAA entregue para a comunidade tem um grau de ineditismo no Brasil. Para construí-lo, o Plantear recebeu informações e referências que ainda estavam em uma folha de caderno. Depois, o trabalho começou com uma equipe grande, cerca de 20 pessoas, e as idas ao Contestado eram até em micro-ônibus.
Foi um trabalho de mais de 14 idas a campo para conversar com lideranças da comunidade e com as famílias locais. Ouvir os objetivos, desejos e demandas das famílias era necessário pois o PAA é, basicamente, uma norma que planeja a retirada da madeira do local, a forma com que ela será vendida e, mais importante, como os recursos vão se traduzir em investimento no Contestado.
Camila Detru, liderança do Movimento, ressaltou a expectativa pela retirada da madeira: “acreditamos que hoje é a etapa final, agora é retirar a madeira e esperar que o nosso assentamento seja um modelo no Paraná”, afirmou. Em mais de 20 anos de comunidade, o processo de construção sempre foi coletivo. “Para que todo mundo seja ouvido, nós temos os coordenadores e com o Plantear a gente foi em todos os grupos, fizemos uma reunião com as famílias e saiu muita ideia para projetar os próximos 25 anos do assentamento”, comentou Camila.
“Meu grande presente foi encarar a estrada para defender o coletivo. Nesse momento eu fico muito feliz de ter esse grupo em busca de projeto de vida e agora vai para a prática”, comentou Maria Natividade durante a assembleia do dia 2 de agosto. Uma das lideranças da comunidade, Maria tem um longo período de estrada na luta pela reforma agrária.
Ela conta que, no Contestado, produz o básico e o suficiente para viver bem.
Diz Maria: “hoje estou feliz aqui porque fundamos a cooperativa, dentro da agroecologia, que permanece até hoje e junto com isso eu fui para a área de saúde, com as ervas medicinais e estou contente. É muito trabalho? É muito trabalho! Mas, ao mesmo tempo, é gratificante.”
Maria ainda reforçou que a busca pela reforma agrária é árdua e destacou que a parceria com o Plantear foi um fortalecimento para a comunidade. Ela lembrou que o documento do PAA vai servir como modelo para a reforma agrária e pode ser replicado em todo o Brasil.
“A gente tem muito mais a aprender com eles do que eles com a gente”, comenta Desirée Lambert. Ela comenta que a universidade tem um papel importante em produzir dados que reforçam a importância dos projetos, além de fazer a assessoria. “A Dona Maria vai saber de muitas coisas que a gente que passa pela universidade não sabe”, afirma.
Na volta do assentamento, da Lapa para Curitiba, Desirée pensava: “a gente trabalha muito com sonhos”. A retirada da madeira ainda era muito distante para muitas pessoas que moravam no lugar, mas, comenta Desirée: “a força do movimento impulsiona esse trabalho e transforma a nossa prática.”
Para Bernardo Donasolo, também do Plantear, “o produto final (o PAA) é até menor do que o processo.” Ele comenta que foi um trabalho de ir atrás das informações, de pessoas que sabiam ou poderiam saber os detalhes necessários para construir o documento. Tudo isso, ele comenta, gerou um acumulo muito grande de conhecimento.
“O nosso jeito de construir as coisas não fica preso na ideia da técnica”, afirma Bernardo. Era preciso entender a realidade da comunidade e como se dá o encontro da universidade com o Contestado.
Foi um sábado repleto de atividades aquele 2 de agosto. Umas delas, a visita na casa de Antonio Capitani. Uma das lideranças da comunidade, Capitani nos recebeu no café, apontou para mim e disse “você é estranho”. E eu respondi: “essa é a melhor definição que você pode dar para mim”. Mas não era sobre meu comportamento que ele falava e, sim, sobre eu ser novo na equipe.

Então me apresentei e disse que costumo ficar mais quieto, observando. Depois do café tivemos a assembleia de entrega do PAA, o almoço e então partimos para conhecer a casa do Capitani e depois, pelo menos eu, a do Edson também.
Em nossa “última” ida ao Contestado, aquela foi a primeira visita para Capitani. Orgulhoso, ele nos contou da chegada ao local, de como estudou para plantar e disse: “veio um técnico aqui e perguntou: como foi que a sua horta sobreviveu a geada?”, ao que disse Capitani: “você acredita em simpatia?”
Essa simpatia, revelou nosso anfritrião, era um pedido a natureza para que preservasse as verduras, os legumes, as laranjas… no caminho das árvores de laranja uma vaca, muito brava, nos avistou. Ela parecia nervosa. Um olho no bezerro, um olho pasto, um olho no Plantear. Ansiosa com os novatos, a vaca deu aquela mugida e o Respeito, um dos cachorros da casa, que nos acompanhava, deixou o grupo momentaneamente e foi conversar com a mamãe vaca.
Fiz esse registro e comentei com nosso grupo. Pode parecer absurdo, você deve estar pensando, mas de fato aconteceu uma conversa. Primeiro, porque a mamãe vaca se tranquilizou e voltou a pastar com mais calma. Depois, porque os porcos da casa ficaram ansiosos quando nós, humanos novatos aquela altura, começamos a nos aproximar.
Com dois ou três latidos, Respeito nos apresentou e a recepção da porquinha foi muito calorosa. E não deixo de acreditar que essa apresentação respeitosa foi fruto do carinho nas orelhas esquerda e direita do cachorro que, ao receber o Plantear, abanou o rabo e pediu uma passa de mão de cada um dos membros da universidade que estiveram lá naquele dia.
Na assembleia do dia 2 de agosto, a equipe do Plantear fez uma apresentação do Plano de Alienação e Aplicação (PAA). O grupo levou uma revista que mostra o passo a passo da construção do trabalho, incluindo uma linha do tempo de todas as oficinas e idas a campo na comunidade.
“Se não for mostrado como será gasto, pode ter sanções. Por isso, o plano pensa em um acompanhamento específico”, comentou Gustavo Soares integrante do Plantear. Essa fala do Gustavo foi direcionada à importância da prestação de contas para mostrar, em detalhes, como o dinheiro foi/será investido e os benefícios coletivos que ele pode gerar.
Além disso, o grupo debateu alguns pequenos ajustes e, também, planos para a área da saúde dentro do assentamento. Por fim, foi feito um reforço sobre a importância do Plano ter um direcionamento, também, para as ações de recuperação ambiental.
No dia 5 de agosto, a equipe do Plantear e também membros do Contestado estiveram presentes na sede do Incra em Curitiba para a entrega e o protocolo do plano junto ao órgão. O trabalho entra, agora, em fase final, com o planejamento da retirada da madeira e investimento dos recursos.
